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  12/12/2018 - por



Brasil pré-kantiano: o estado crítico da crítica, o avanço das sombra e o futuro da universidade pública



Estamos sob tempos sombrios. No Brasil de 2018 os espectros do obscurantismo renascem sob a força da pós-verdade e da anulação das mediações. Neofundamentalismo religioso, neomaniqueísmo político e ultraneoliberalismo capitaneado pelo capital sem controle e que a tudo controla perfazem uma tríade que faz regredir o país a um estágio civilizatório pré-kantiano. Com uma diferença: é um pré com capa de pós, up to date, pois atualizado e integrado ao maravilhoso e espetaculoso mundo da verdade digital. Todos conectados pelo circuito da desinformação e da mentira programática. Já bem antes de Kant, o velho Cartesius sustentava ser o bom senso a coisa mais bem partilhada do mundo. Mas no prevalente regime da pós-verdade que a tudo parece tragar, inclusive o que resta de Universidade Pública e de público na universidade, o poder avançou mais que o bom senso. Bem o notava o saudoso libertário Maurício Tragtenberg: o poder sem saber e o saber sem poder concorreram para o que ele denominava de “delinquência acadêmica”. Com esta guarda afinidade a “escola sem partido” e a universidade sem crítica.

Numa nota ao Prefácio à primeira edição da Crítica da razão pura Kant definia sua época (final do século XVIII) como a época da crítica a que tudo deveria se submeter, tanto a religião quanto a legislação. Ocorre, segundo nosso circunspecto filósofo, que a religião por conta de sua santidade, e a legislação, por força de sua majestade, imaginavam-se acima da crítica e em consequência terminavam por levantar sérias suspeitas contra si mesmas, impedidas, pois, de aspirar ao sincero respeito que a razão só pode devotar a quem admite passar pelo filtro de seu livre e público exame. A crítica é base de todo conhecimento. Sem crítica haverá sociedade da informação, nunca do conhecimento. Sem crítica não haverá discernimento ou filtro cognitivo. Sem crítica os dispositivos de (des) informação em massa continuarão a massificar o poder do imbecil.

Quem primeiro é sacrificado quando prevalece a lógica fanática dos extremos e refratária à crítica é sempre o uso público e livre da razão. Quem cancela o debate impede o esclarecimento. Quem não compreende não explica. Quem pensa explicar sem compreender sacrifica o real e dificilmente vai além da percepção epidérmica de si e do mundo.  É sempre necessário desconfiar de quem reivindica para si o poder de chegar ao Absoluto ou ao que mais relativo é por meio de revelações. Quando numa sociedade aumenta essa inusual via de acesso cognitivo – e hoje a religião é um terreno fértil para revelações de toda ordem – estamos diante de um indicador seguro de que o coeficiente de esclarecimento se encontra em perigo.  O acesso imediato ao real é da ordem da razão divina. A razão histórica, única de que dispomos, opera sempre discursivamente e por meio de mediações. Nem mesmo ao que crê é facultado prescindir das mediações para pensar o que julga ser da ordem do absoluto.

Kant, movido pelo mesmo espírito que Hegel depois denominaria de paciência do conceito, escreveu as três críticas de seu monumental edifício filosófico: a Crítica da razão pura, a Crítica da razão prática e a Crítica do juízo. Em resumo, não seria difícil perceber no Brasil de hoje o mal-estar de Kant em meio à produção e divulgação, sem o necessário anteparo crítico de filtro cognitivo, do que podemos classificar de lixo mediático, tão funcional para a manutenção das consciências sob o registro do cotidiano irrefletido. Crítico e herdeiro de Kant, Hegel admitia que nada de grande no mundo é feito sem paixão. Mas a paixão em Hegel não pode ser pensada sem o concurso da razão. Se a paixão é parte do real e o real é racional, o racional é igualmente real e nele se inscreve a paixão. Kant e Hegel, cada um com seu arsenal teórico, combateram com tenacidade o reino das sombras e da sonolência da razão. Goya, do século do iluminismo kantiano, mas muito mais por meio da razão estética do que pura, assinalava que o sono da razão pode gerar monstros. Kant, Goya e Hegel encontrariam precário e inóspito abrigo no Brasil da segunda década do século XXI, em que as sombras da intolerância e do ódio avançam em extensão e intensidade e fazem regredir o espaço crítico.  

A baixa política em curso atravessa e compromete a vida institucional e o exercício do poder, de cima a baixo, de nossa limitada democracia. Sobra poder e falta bom senso.  Para Kant, é crime de lesa-natureza a criminalização da crítica ou o conjurar o sagrado direito ao esclarecimento, ao uso público da razão.  O estado crítico da crítica fortalece o Estado de exceção, naturaliza as desigualdades e faz regredir ao mínimo as conquistas civilizatórias associadas ao que defendemos como Estado Democrático de Direito, formalmente constituinte da República Federativa do Brasil e definido no pórtico da Constituição de 1988, em seu Art. 1º.

Há quase dois milênios e meio da condenação de Sócrates na Atenas da democracia, acusado de corromper a juventude, de descrer nas divindades tradicionais e de difundir a crença em novos deuses, o Brasil do século XXI pouco avançou no uso público e socrático da razão. Expulsa da cidade, ontem em Atenas e hoje em Brasília, a filosofia segue sua trajetória de exílio. Mesmo as universidades já não representam abrigo seguro para a filosofia, porque tragadas pela razão produtivista e submetidas à dialética funcional da pós-verdade. 

Não há direito à justiça sem direito ao pão e às letras. Não há cidadania sem esclarecimento. Aliás, repetindo Brecht, “a justiça é o pão do povo". Até o papa João Paulo II o reconheceu em célebre alocução à população de uma grande favela em Lima, Peru, em fevereiro de 1985: “que desapareça a fome de pão e cresça a fome de Deus”. A honesta exegese da afirmação pontifícia indica que fome de Deus equivale à fome de justiça. E a justiça implica relação de simbiose entre intestino e encéfalo.  A miséria tanto pode desencefalizar quanto tornar-se útil à nanopolítica, que hoje habita largos espaços nas instâncias de poder, da federação às municipalidades. Sem garantir universalidade, como preconizava Kant, ao sagrado direito ao esclarecimento, seguiremos a tomar distância da grande política, de Aristóteles a Gramsci, e a afundar na barbárie produzida pela civilização da venalidade universal.

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Ufam e filho dos rios Solimões e Jaguaribe.


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