
Jornalista Elaíze Farias foi uma das convidadas do evento
Daisy Melo
Um chamado para uma ação mais eficaz da Universidade Pública em defesa da Amazônia e dos seus povos e populações tradicionais ameaçados com mais intensidade atualmente pela mineração predatória. Essa foi a tônica da Conferência “Amazonizar a luta porque a vida não se negocia!”, ocorrida em 13 de junho, no auditório da Escola Superior de Tecnologia da Universidade do Estado do Amazonas (EST-UEA), como parte da programação do 44º Encontro das Seções Sindicais da Regional Norte 1 do ANDES-SN. A mesa trouxe como convidada para discutir a temática a jornalista e cofundadora e editora de conteúdo da agência Amazônia Real, Elaíze Farias.
Histórias reais de pessoas que travam uma luta muitas vezes solitária contra o avanço do capitalismo sobre suas comunidades foram apresentadas pela jornalista durante sua exposição. É o caso do personagem de uma de suas reportagens: Milton Menezes, do povo Mura, morador do Lago do Soares, no município de Autazes, região disputada pela mineradora Potássio do Brasil. “Essa área é de resistência. O Milton é exemplo de pessoa que não negocia a vida. O terreno dele foi o único que não foi vendido para a Potássio. Ao redor tudo foi vendido sob muita pressão. É uma terra confinada, pressionada pela Potássio, e o Milton é uma grande resistência”, disse enquanto exibia a fotografia do indígena.
Dar nome e mostrar o rosto de pessoas como Milton foi uma maneira de Elaíze questionar também a abordagem feita tanto pela mídia quanto pela Universidade. “Vê-se nos debates, na mídia e nas pesquisas, os dados estatísticos, mas observo que isso é tratado de forma abstrata, distanciada, como se fosse um problema por si só, um problema que surgiu sozinho, e se esconde o que está por trás. Há no debate uma abstração, não se analisa a causa. Quem está causando isso? Também é preciso dizer quem são as pessoas que estão ali resistindo, sendo ameaçadas e mortas”, frisou.

Milton Menezes defende seu território da mineração
Para a jornalista, a Universidade precisa cada vez mais atuar como agente de denúncia, expondo que o que está por trás dessa realidade é, nas palavras dela, a voracidade e o avanço do capitalismo, que recria, adapta e reconstrói o projeto colonialista na região amazônica. “Os empreendimentos e os novos projetos neoliberais de hoje não são analisados como se deve, como um problema nosso. O caso da Potássio em Autazes é um problema muito nosso, e são problemas locais que terão repercussão global, afetarão as próximas gerações”.
Os movimentos indígenas, quilombolas, de populações tradicionais atuam sozinhos nesse enfrentamento, na avaliação da jornalista especializada na cobertura desses eventos. “É uma situação que eu estou trazendo talvez de forma alarmista para provocar, porque não vejo uma atuação da Academia nessas situações”. Em contrapartida, Elaíze lembra que as poucas pessoas aliadas à causa acabam sendo perseguidas, como foi o caso recente da professora da Faculdade Direito da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Caroline Nogueira. A docente foi ameaçada pela própria universidade com um Processo Administrativo, por coordenar o grupo de pesquisa e extensão Observatório de Direito Socioambiental e Direitos Humanos na Amazônia (ODSDH), que presta auxílio jurídico voluntário ao povo Mura da região de Autazes afetada pela exploração da Potássio do Brasil.
“Houve a denúncia contra ela porque a própria Ufam apoiava a Potássio. Fiz uma entrevista longa em que a Caroline faz uma fala importante sobre o papel da universidade pública nessa situação, e faz provocações do porquê a universidade tem que estar ao lado desses grupos, do movimento dos povos indígenas e das pessoas que estão lutando contra as violações de direitos”, contou Elaíze. Em 2023, a jornalista também publicou uma reportagem em que expõe a assinatura de um Termo de Cooperação entre Ufam e Potássio do Brasil. “É por isso que defendo mais atuação da Academia, porque pelo que observo a situação tende a piorar, não vejo muita perspectiva enquanto não tiver uma mobilização mais forte (…) O que aconteceu com Rondônia, onde nem se vê mais floresta, com exceção nas terras indígenas, é o que vai acabar acontecendo com o Amazonas ainda mais com a BR-319”.
O avanço da mineração na Amazônia conta com o impulsionamento do poder público. No caso da Potássio do Brasil, entre os apoiadores estão o vice-presidente, Geraldo Alckmin, e o Ministério de Minas e Energia. “Esses projetos são regulados pelos próprios agentes que causam a destruição, os empresários, as grandes indústrias, como a Potássio do Brasil que é uma empresa com base no Brasil, mas é controlada pelo banco Forbes & Manhattan, que tem matriz no Canadá, país que domina 75% da mineração no mundo todo”. No Amazonas, a mineradora recebeu do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) os licenciamentos necessários para atuar.
O caso Eneva
Jonas Mura, liderança indígena da aldeia Gavião Real 2, no município de Silves (AM), é outra resistência citada pela jornalista. Na região a exploração de gás e petróleo foi iniciada sem consulta aos(às) indígenas pela Eneva S/A, que tem como principal acionista o banco BTG Pactual, que teve como cofundador o ex-ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes. “A empresa chega com o discurso de que está trazendo empregos e benefícios, fazendo acordo com o governo, no entanto afeta o território dos povos Mura, Sateré-Mawé e Munduruku. São sete aldeias indígenas, muitas comunidades ribeirinhas. Nunca teve consulta e debate com as populações”, explica Elaíze.
Vivem em Silves em torno de 1.500 mil indígenas, segundo lideranças consultadas pela Amazônia Real. No Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o registro é de 1.066 indígenas. Em 2015, a Funai visitou o território e, na ocasião, seis aldeias foram registradas com o nome Terra Indígena Gavião Real. Desde então, o processo de demarcação encontra-se paralisado. “A Eneva avança dentro da aldeia com o argumento de que não há demarcação, não é terra indígena, essa retórica da ausência de indígenas é uma estratégia comum, e não é assim, de fato nem precisaria ter terra demarcada, porque esse é um direito originário dos povos indígenas”.

Jonas Mura próximo a placa da Eneva em Silves (AM)
Devido a sua atuação em defesa do território, Jonas foi ameaçado de morte, teve a casa incendiada e hoje faz parte do Programa de Proteção à Testemunha. “Jonas lutou muito tempo sozinho, hoje eles [indígenas] têm o apoio de algumas organizações, mas quando se encontram em condições de vulnerabilidade, sem apoio, aliados e visibilidade, e fragilizados, [as empresas] encontram um campo fácil para avançar, chegam mais facilmente, eles pensam ‘vamos chegar lá e assediá-los, cooptá-los’”, comentou a jornalista destacando que o município de Silves é a região do Amazonas que abriga o maior número de rios e afluentes e possui uma ampla riqueza arqueológica.
A falta de consulta aos Mura foi denunciada recentemente em nota pela Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). “Nós, povo Mura, seguimos vivos e em resistência. Nossa luta não é apenas memória; ela continua hoje, com força e urgência, contra os projetos de morte que ameaçam nossos territórios e modos de vida. Empresas como a Eneva, que patrocina o Festival Folclórico de Parintins e a Potássio do Brasil, outra empresa trabalhando dentro de nossas terras sem o devido processo de consulta livre, prévia e informada, como garantido pela Convenção 169 da OIT”. Direcionada ao Boi-Bumbá Caprichoso, a nota em questão, publicada no dia 30 de junho, evidencia a busca cada vez mais comum de grandes corporações por um selo ou um “verniz verde” de empresa amiga da cultura e do meio ambiente.
Farsa do carbono
Muitas vezes apresentado como uma solução ambiental, o mercado de carbono foi outra questão abordada durante a conferência. “Isso é a mercantilização da floresta, a mercantilização da terra, é um engenho muito bem feito para enganar as pessoas, e está enganando moradores de comunidades, indígenas e pesquisadores, causando conflitos (…) é uma lógica terrível, uma lógica de mercado, a proteção da floresta foi transformada num negócio, numa mercadoria”, denuncia Elaíze.
Na Amazônia, a lógica do mercado de carbono tem espalhado seus tentáculos em estados como Amazonas e Pará, por meio de projetos de crédito de carbono desenvolvidos por empresas que contam com o aval de autoridades públicas como os governadores Wilson Lima e Helder Barbalho. “A situação hoje da Amazônia não é fácil. Teve o período do Bolsonaro que foi uma tragédia, mas no governo Lula não mudou muito pelo menos na área socioambiental e dos povos indígenas. Não está tendo tanta demarcação de terras indígenas como se esperava, é uma pressão no Congresso, uma coalizão forte. Se não for a sociedade civil, os movimentos sociais e de professores para confrontar, vamos perder”.
Publicado em 26 de junho, um levantamento da InfoAmazonia revela que 61% do crédito de carbono vendido da Amazônia brasileira está em áreas destinadas à mineração. No total, são 40,1 milhões de toneladas de carbono potencialmente “sujo”, negociadas por 31 projetos baseados no REDD+, mecanismo criado no âmbito da Convenção do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU). A reportagem expõe que a geração de créditos de carbono em áreas com concessão mineral compromete a compensação climática prometida.
ADUA em luta!
Em sua intervenção, a vice-presidente da Regional Norte 1 (2023-2025) e presidente da ADUA (2024-2026), Ana Lúcia Gomes, destacou a atuação da Seção Sindical como entidade defensora dos direitos indígenas. De 2023 a 2025, a Seção Sindical usou seus canais de comunicação para publicar notas e notícias sobre a exploração mineral da Potássio do Brasil em Autazes de forma a garantir o esclarecimento da sociedade e dar espaço para as vozes que defendem as causas dos povos originários.
Nos dias 29 e 31 de maio deste ano, a ADUA – representada pelo professor Raimundo Nonato Silva – participou do VIII Encontro do Povo Mura na Comunidade Indígena Lago do Soares, em Autazes (AM), evento que reafirmou a resistência da população contra a mineração no território.
A Seção Sindical publicou, em 19 de setembro de 2024, uma nota em apoio a docente Caroline Nogueira. “A ADUA manifesta profunda preocupação quando a Ufam inicia um Processo Administrativo contra uma servidora do seu quadro sem obedecer a etapas fundamentais de sua instauração. A professora Caroline Nogueira sequer foi ouvida em primeira mão, revelando-se um processo de instalação acelerada a partir de uma denúncia anônima. Esse procedimento açodado de execração pública da professora revela-se descumpridor da ritualística em processos dessa natureza, trazendo inquietação à vida acadêmica”.
No dia seguinte à publicação, o ANDES-SN tornou pública uma nota de solidariedade da Diretoria ao povo Mura e à Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (FAMDDI), da qual a ADUA também faz parte. “O povo Mura enfrentou a colonização da Amazônia, e vive sangrentos ataques e intensas ameaças à sua existência ontem e hoje, atualmente resiste e enfrenta a presença da Mineradora Potássio do Brasil na região de Autazes/Amazonas. A mineradora vem desenvolvendo atividades ilegais que colocam em risco a vida de todo Povo Mura e destrói o meio ambiente”.
Em nota de 24 de maio de 2023, a ADUA afirmou: “nos preocupa que ações que envolvam preservação de povos originários de seus territórios não tenham tido no âmbito da Universidade o espaço necessário para o debate amplo, o que pode transparecer uma pretensa supervalorização do poder da academia no resguardo aos valores das populações originárias, como se a garantia ‘da questão social e ambiental’ fosse de responsabilidade e domínio somente dos(as) pesquisadores(as) da Ufam. A ausência de uma discussão da Universidade com as organizações indígenas para se averiguar como este processo de mineração tem sido avaliado por elas revela a necessidade premente da Universidade refletir seu posicionamento sobre esse tema”.
“Amazonizar a luta porque a vida não se negocia! Compromissos e desafios dos movimentos docentes na Amazônia contra a destruição capitalista” foi o tema central do encontro realizado nos dias 13 e 14 de junho. Além da conferência, o primeiro dia contou com café amazônico agroflorestal, produzido pela Arte & Escola na Floresta, e mesa de abertura mediada pela professora, Letícia Mamed (ADUFAC), e composta por: Ana Lúcia Gomes, a coordenadora do Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam), Izabel Cristine Munduruku, e demais representantes das seções sindicais da Regional Norte 1.
No primeiro dia do encontro também foi realizada a mesa “Políticas de Educação Indígena nas Universidades amazônicas: cenários e desafios” (confira a matéria nas próximas páginas). O Encontro da Regional Norte 1 teve como objetivo fortalecer a luta docente por meio do compartilhamento de experiências entre seções sindicais e associações docentes do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima.
Fotos: Daisy Melo/Ascom ADUA (primeira) e Bruno Kelly
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