| Os  cortes propostos pelo governo federal ao orçamento do Ministério da  Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) podem colocar a perder muitos dos  significativos avanços obtidos nos últimos anos e vão na contramão de  outras medidas adotadas pela própria União em tempos recentes, como a  expansão da infraestrutura de ensino público universitário e a busca  pela internacionalização da ciência brasileira.
 Esse é o  diagnóstico quase unânime dos cientistas ao tratar da redução em cerca  de 22% na verba federal destinada ao sistema de CTI brasileiro para  2012. É o segundo ano consecutivo em que há contingenciamento de  recursos destinados ao MCTI. Somados, os dois cortes fizeram o valor  disponível ao Ministério cair de R$ 7,8 bilhões, em 2010, para R$ 5,2  bilhões, neste ano. Mesmo sem levar em conta a inflação no período (que  tornaria a situação ainda mais alarmante), o orçamento foi reduzido a  dois terços do valor do último ano do governo Lula.
 
 O anúncio dos  cortes, justificado no governo pela crise financeira internacional, foi  veementemente criticado por representantes da comunidade científica. A  Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Sociedade  Brasileira de Física (SBF) e a Sociedade Brasileira de Astronomia (SAB)  estiveram entre as entidades que divulgaram notas de repúdio à ação  federal.
 
 Os protestos não se limitaram à esfera científica.  Representantes do setor industrial, preocupados com o impacto dos cortes  no estímulo à inovação – fator essencial para a preservação da  competitividade da indústria braseileira no cenário internacional –  também se manifestaram contrários à restrição de recursos.
 
 “No  momento em que o Brasil começa a se afirmar no cenário internacional,  consideramos tal redução orçamentária um grave retrocesso para a  política de formação de recursos humanos qualificados e o  desenvolvimento científico nacional”, afirma Celso de Melo, presidente  da SBF. “É desanimador constatar que, pelo segundo ano consecutivo, cai a  fração do PIB aplicada em ciência, tecnologia e inovação, o que nos  coloca cada vez mais distante dos percentuais observados para o setor  nos países desenvolvidos.”
 
 Contraste internacional
 Mais  do que aumentar a distância entre nós e as nações mais avançadas, a  decisão – que os cientistas ainda esperam reverter – coloca o Brasil em  forte contraste com outros países em estágio similar de desenvolvimento.  Na China, por exemplo, a despeito de uma expectativa menor de  crescimento (a exemplo do que ocorre aqui), o primeiro-ministro Wen  Jibao anunciou em março um aumento de 12,4% no orçamento para ciência e  tecnologia, atingindo a expressiva soma de US$ 36 bilhões. Dentre as  medidas adotadas, incluem-se uma elevação de 26% nas verbas voltadas à  pesquisa básica e um incremento de 24% no montante de recursos  destinados às universidades de elite.
 
 “É interessante notar que o  aumento do orçamento para pesquisa e a redução do crescimento foram  anunciados no mesmo discurso, o que indica uma consciência muito clara  sobre o papel da ciência, da tecnologia e da inovação no futuro da  China”, comenta Luiz Davidovich, pesquisador da UFRJ (Universidade  Federal do Rio de Janeiro) e membro do conselho da SBF. “Infelizmente,  não podemos dizer o mesmo do Brasil.”
 
 Impactos imediatos
 
 Em  alguns estados da federação, como São Paulo e Rio de Janeiro, há uma  “rede de proteção” estadual consistente que pode amenizar um pouco os  impactos, com fundações de amparo à pesquisa (FAPs) consolidadas e  financiando importantes trabalhos das comunidades científicas locais.  Contudo, nas regiões menos desenvolvidas do país, como o Centro-Oeste, o  Nordeste e, sobretudo, o Norte, essa estrutura local ainda não tem  participação tão significativa nas verbas destinadas ao sistema de CTI, e  o resultado dos cortes pode ser ainda mais dramático.
 
 “O  financiamento do MCTI constitui a parte mais significativa do  investimento na região”, diz Luis Carlos Bassalo Crispino, físico da  UFPA (Universidade Federal do Pará). “Isso acontece porque as fundações  de amparo à pesquisa do Norte, quando existem, são muito jovens e ainda  não apresentam continuidade em seus investimentos. Para que se tenha uma  ideia, nem mesmo todos os estados da região possuem uma FAP.”
 
 O  estrangulamento do orçamento nacional para pesquisa cria ainda mais  complicações com o recente movimento do governo brasileiro de ampliar a  rede de universidades federais – um esforço para democratizar o acesso  ao ensino superior público de qualidade e abrir vagas para os doutores  formados no país.
 
 “Atraídos por essa nova oferta de emprego,  diversos brasileiros foram repatriados. Em um prazo de dois anos tivemos  um aumento de cerca de 20% no número de professores em diversos  departamentos de física no país”, afirma Marcia Barbosa, diretora do  Instituto de Física da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)  e vice-presidente da IUPAP (International Union of Pure and Applied  Physics). “O Brasil se tornou um celeiro de empregos e atraiu  pesquisadores de todo o mundo que se interessavam a vir aqui para  estágios de pós-doutorado.”
 
 Contudo, com o corte de recursos para  a pesquisa nos últimos dois anos, esse tiro pode acabar saindo pela  culatra. Os doutores recém-formados absorvidos nas vagas de docência  nessas instituições estão sendo obrigados a abandonar seus esforços de  pesquisa, sem verba que estão para conduzi-los.
 
 “Aliás, esses  jovens já estão sofrendo um verdadeiro massacre, pois em várias  instituições nacionais devem lecionar 12 ou mais horas de aula por  semana. Em instituições de pesquisa de países desenvolvidos, a carga  horária típica semanal em sala de aula de um professor é de cerca de 3  horas por semana”, diz Davidovich.
 
 “Com a atual carga horária, e  um fraco apoio às atividades de pesquisa, estamos liquidando o que há de  mais precioso nos ambientes de pesquisa: o vigor e a criatividade de  jovens pesquisadores. Nessas condições, fica difícil competir com os  países mais desenvolvidos”, completa.
 
 Corre-se o risco de as  novas universidades públicas replicarem o modelo do ensino superior  privado, que, salvo poucas e louváveis exceções, se dedica única e  exclusivamente à emissão de diplomas, sem se preocupar com a produção de  conhecimento.
 
 Sem Fronteiras e Sem Futuro
 
 O  estrangulamento dos orçamentos de pesquisa também entra em rota de  colisão direta com uma das grandes bandeiras recentes do governo  brasileiro, o programa Ciência Sem Fronteiras, destinado a financiar  bolsas de estudo em universidades estrangeiras.
 
 “Uma consequência  direta desses cortes é que teremos uma geração de jovens que vieram de  experiências produtivas no exterior e que, sem a infraestrutura  apropriada, se tornarão profissionais frustrados”, diz Marcia Barbosa.
 
 “O  problema não é somente a descontinuidade das pesquisas em andamento,  mas sobretudo o efeito desmotivador que isso produz nos estudantes de  pós-graduação e nos cientistas mais jovens”, complementa José Wellington  Tabosa, físico da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). “Um mínimo  de regularidade orçamentária é fundamental para o planejamento de  qualquer atividade, principalmente em ciência e tecnologia, onde a  interrupção de um projeto de pesquisa, mesmo por um curto tempo, pode  significar o seu fim.”
 
 “O Ciência Sem Fronteiras é um programa  para treinar no exterior pesquisadores para o futuro. Mas não haverá  futuro se agora não construirmos a infraestrutura científica  necessária”, prossegue Marcia Barbosa.
 
 Mais ameaças no horizonte
 
 Além  de seu impacto imediato no financiamento à pesquisa, com todos os  malefícios que ele traz no fomento a uma estrutura robusta de CTI no  país, os cortes prejudicam muito programas de pesquisa que, por sua  própria natureza, exigem comprometimento constante e de longo prazo.
 
 “Um  exemplo é o caso da Física Experimental de Altas Energias onde os  projetos levam anos para serem implementados, e os experimentos operam  por dezenas de anos”, menciona Sergio Novaes, físico da UNESP  (Universidade Estadual Paulista) envolvido com um dos experimentos  instalados no LHC (Large Hadron Collider), o maior acelerador de  partículas do mundo, instalado no CERN (Centro Europeu para Física de  Partículas), na divisa entre a França e a Suíça.
 
 “O envolvimento  nesses experimentos requer compromissos de longo prazo, que exigem acima  de tudo uma estabilidade no financiamento”, diz Novaes. “Não cumprir  com as responsabilidades assumidas compromete a credibilidade da ciência  brasileira perante os grupos e laboratórios internacionais e vai na  contramão dos esforços brasileiros recentes de internacionalização da  ciência produzida no país.”
 
 Interessante lembrar que o Brasil  iniciou um esforço consistente de inserção de sua ciência no contexto  internacional, buscando parcerias com instituições como o CERN e o ESO,  que constituem o que há de mais relevante em seus segmentos (física de  partículas e astronomia). A instabilidade orçamentária, se não leva  diretamente à inadimplência, certamente criará trepidações nas relações  com os países participantes desses consórcios, que podem temer que o  Brasil não cumpra com suas obrigações depois de negociar seu ingresso  nas organizações.
 
 Nano-orçamento
 Outra área  que está na fronteira da ciência hoje e que pode ser prejudicada  fortemente pelos cortes orçamentários é o desenvolvimento da  nanotecnologia. O país teve a chance de embarcar nessa onda – que  ambiciona o desenvolvimento de dispositivos e materiais construídos nas  menores escalas possíveis, muitas vezes feitas de alguns poucos átomos,  com potencial tecnológico revolucionário –, mas não conseguiu.  “Infelizmente nessa área o país vem patinando há vários anos, com  mudanças constantes de coordenação e políticas desconcertadas”, afirma  Marcos Pimenta, especialista em nanotecnologia na UFMG (Universidade  Federal de Minas Gerais).
 
 Mesmo em sua plenitude, o orçamento  nacional dedicado às “nanos” sempre foi modesto, se comparado a outros  países. “Só para termos um parâmetro de comparação, Singapura está  gastando US$ 100 milhões só em um centro para estudar e desenvolver  tecnologias baseadas no grafeno [forma molecular de carbono que o torna  extremamente promissor para aplicações]”, diz Fernando Lázaro, diretor  do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas). “No Brasil, em 2011,  devemos ter gasto ou prometido gastar menos que 10% desse valor em todas  as diferentes vertentes das nanociências. Se essa situação não for  revertida rapidamente, o Brasil não vai ter um papel minimamente  relevante nesse segmento.”
 
 Adalberto Fazzio, físico da USP,  assumiu em 2011 a coordenação da área de nanotecnologia no MCTI e tem  feito grande esforço para finalmente organizar as ações nessa área. “Ele  propôs inclusive um arranjo interministerial para uma política geral do  governo sobre nanotecnologia”, diz Pimenta. “Mas o corte no orçamento  pode vir a prejudicar seu trabalho.”
 
 A busca pela reversão
 O  MCTI ainda está por anunciar publicamente em que áreas especificamente  os cortes incidirão, mas nesse momento Luiz Davidovich acha que o foco  da comunidade científica deve ser em enfaticamente mobilizar governo e  sociedade civil para impedir que o contingenciamento venha a acontecer  de fato. “Temos de protestar veementemente contra essa política, que  compromete o futuro de nosso país.”
 
 Há esperança, entre os  cientistas, de que esse corte violento e sistemático possa ser  contornado. “Espero que haja uma reversão dessa decisão e que, ao longo  do ano, possamos recompor o orçamento do MCTI e recuperar as perdas que  certamente ocorrerão”, diz Carlos Alberto Aragão de Carvalho Filho,  físico da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e diretor-geral  da Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS).
 
 Em  nota oficial, a SBF pede ao governo federal que reveja os limites de  despesas presentemente estabelecidos, de forma que o mínimo de  consistência na política científica brasileira possa ser preservado. Em  risco está nada menos que o futuro desenvolvimento do país.
 
 
 
 
 Fonte: Sociedade Brasileira de Física |