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  05/04/2023 - por José Alcimar de Oliveira



Sobre capitalismo, maniqueísmo e mal metafísico



 

 

Não era necessário acreditar na existência de um princípio do mal, porque os homens só por si têm capacidade suficiente para se perverterem (José Saramago).

 

01. De pleno acordo com José Saramago. O maniqueísmo atual, que envenena e captura mentalidades que vivem numa espécie de bolha digital, é legitimado pela crença, de fundo religioso, sobretudo, na existência de um mundo (falso, certamente) dividido entre dois princípios absolutos: o princípio do bem e o princípio do mal. Deixemos de lado por ora a discussão do chamado mal metafísico. De quem é subjugado pela imanência da miséria real pouco faz sentido, e chega a ser acintoso, exigir-lhe considerações especulativas sobre o caráter transcendental do mal dito metafísico. Para evitar o dúbio sentido: metafísica do mal.    

 

02. O mal realmente existente é histórico, construído pelo ser social.  A miséria real não é uma abstração. Para evitar a disputa entre Hegel e Adorno, vamos admitir que no todo habitam o verdadeiro e o falso. A desigualdade social, hoje, com a vida desumanizada em que vive a maioria da população desse maltratado planeta, não é um acidente da natureza, menos ainda um fenômeno de origem sobrenatural.  Decorre antes de relações sociais capitalistas construídas pela sociedade de classes. No barco do mercado, comandado por mãos invisíveis, mas de crimes humanos perfeitamente visíveis, a salvação é de natureza seletiva.

 

03. O discurso maniqueísta (político, religioso, moralista) é sempre funcional à opressão de classe da burguesia (vista como agente do bem) sobre o proletariado (visto como a classe do mal). Não podemos dividir o mundo entre crentes (agentes do bem) e não crentes, agnósticos, ateus (agentes do mal). O critério da verdade é a prática. Jesus de Nazaré bem o mostrou antes de Marx. A ortopraxia tem precedência teológica sobre a ortodoxia. Para a simplificação maniqueísta, da vida paralela, não há lugar para o contraditório como constituinte essencial e inseparável da existência do ser social.  

 

04. É saudável manter cuidado e distância epistêmica de  quem tem a boca cheia de Deus, Pátria e Família. Como pode falar em salvação da alma quem maltrata o corpo com a fome.  Quando Jesus afirma que veio para que todos tenham vida, refere-se antes à vida materialmente vivida. Não separa o transcendente do imanente.  Vale dizer que para o Mestre de Nazaré a porta da salvação se abre no devir da imanência à transcendência: "Vinde (...) eu estava com fome, e me destes de comer; todas as vezes que fizestes isso a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes" (Mt 25, 34.40). 

 

05. Para Brecht, a justiça é o pão do povo. Se a vida vivida (sobrevivida) não importasse, por que Jesus iria se compadecer do povo faminto e multiplicar os pães?  Segundo o Texto Base da Campanha da Fraternidade (CF) de 2023, "(...) a fome de uns - a fome de uma só pessoa! - onera a todos nós, onera a sociedade inteira". Ainda no Texto Base da CF de 2023 encontramos: “A fome é um dos resultados mais cruéis da desigualdade. Afeta inicialmente os mais necessitados. Atinge, contudo, a todos, diz respeito à sociedade inteira. Esta é a razão pela qual o Papa Francisco, sem rodeios, afirma que ‘não há democracia se existe fome’”.

 

06. O nº 40 do Texto da CF 2023 nos apresenta uma síntese da tragédia social da fome no País que tanto exalta sua condição de exportador de alimentos para o mundo: “Em abril de 2022, apenas 41,3% dos domicílios brasileiros tinha seus moradores em Segurança Alimentar (SA), 58,1% viviam em algum nível de Insegurança Alimentar (IA), dos quais 15,5% conviviam com a fome. Em números absolutos, isso significa que do total de 211,7 milhões de brasileiros e brasileiras, 125,2 milhões convivem com alguma Insegurança Alimentar (leve, moderada ou grave), dentre os quais mais de 33 milhões de pessoas enfrentam a fome em nosso País”.

 

07. No País da fome capital, com seus números de elevada produção agrícola, não come quem tem fome, mas quem tem o necessário poder aquisitivo. Quando domina o valor de troca e diminui a taxa de valor de uso do que é produzido, o reino da fome alarga suas fronteiras sobre o povo e mata à mingua e de forma estrutural a imensa população dos perversamente incluídos no festim do capital. Não é de origem metafísica, mas antes física, material e histórica, o mal que a burguesia, com seu regime de fome compulsória, com sua política de subnutrição, impõe sobre a vida da classe trabalhadora brasileira.   

 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, base da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru, AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana, CE). Em Manaus, AM, abril de 2023.







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