
Bodanzky, ícone do cinema político, expõe acervo so brememória da Ditadura empresarial-militar no Brasil - Foto: Sue Anne Cursino/ Ascom ADUA
*Entrevista feita por Flávia Quirino (Brasil de Fato), Ivânia Vieira (FIC/UFAM) e Sue Anne Cursino (Ascom/ ADUA). Edição de Sue Anne Cursino
Adentrar uma exposição e encontrar o próprio autor das obras, ainda mais sendo um dos maiores nomes do cinema político brasileiro, não fazia parte das nossas expectativas para um domingo de passeio no Museu da República, em Brasília. Caminhávamos pela galeria da mostra “Que País é Este?”, assinada por Jorge Bodanzky, quando, para nossa surpresa, nos deparamos com ele.
E aí surge a pergunta: para quem é jornalista, tudo pode virar pauta? Antes da resposta, a gente sabe que o que move esse olhar atento é a curiosidade e a coragem. Foi assim que nos aproximamos de Bodanzky, fizemos uma foto e naturalmente um diálogo começou.
Bodanzky parecia imerso naquela conversa e nos mostrava algumas peças da exposição, quando fomos interrompidas por uma senhora que se apresentou como professora, e, sem demora, afirmou que as obras deveriam ser exibidas nas escolas. A observação chamou a atenção do diretor, roteirista e fotógrafo, sempre movido por inquietude e curiosidade. Seus olhos grandes e atentos, à procura da história que poderia passar despercebida, se voltaram para aquela pessoa.
A nossa conversa se encerrou de repente e sorrimos em despedida. Ele então tirou o celular do bolso, ligou a câmera e começou a gravar o que agora passava a ser um depoimento.
A seguir, leia o “diálogo não combinado” com Bodanzky, durante a visita a sua exposição que reúne acervo sobre a memória da ditadura militar. Aos 83 anos, ele segue refletindo sobre democracia e ativismo.
Flávia: A gente acabou de viver um momento histórico no Brasil, do julgamento do ex-presidente, mas é a primeira vez em que militares são condenados no Brasil por tentativa de golpe. E, para você, que vivenciou todo esse período, como enxerga essa relação do passado com o presente?
Bodanzky: A gente vê que, na realidade, as coisas não acabaram. Ao contrário, só cresceram. Mas eu acho que, devagarzinho, ou talvez por uma conjunção de fatores, pela primeira vez militares e pessoas envolvidas numa trama golpista foram julgados e condenados. Se vão cumprir isso ou não é uma coisa secundária, mas o fato de terem sido condenados é uma sinalização muito importante. Se isso vai durar muito tempo a gente não sabe, porque a história dá voltas. Quando acabou a ditadura e veio a Constituição, todo mundo dizia: “nunca mais vamos ter ditadura”, “o Brasil agora vai viver livre”. E olha aí tudo o que está acontecendo. A história é assim. E é importante conhecer a história. E um dos principais objetivos dessa exposição, que começou no Instituto Moreira Salles ano passado, que foram 60 anos da Ditadura Militar, então eles queriam marcar essa data, porque as novas gerações não conheceram e não viveram isso.
Ivânia: O que o Bodanzky atrevido e teimoso daquela época diria para esse Bodanzky de hoje?
Bodanzky: Continue igual, continue fazendo, tá no caminho certo. E eu continuo fazendo. Inclusive, o último trabalho que fiz se chama Amazônia, A Nova Minamata? [2023], onde eu mostro o envenenamento por mercúrio no rio Tapajós [Pará], dos Mundurukus, e comparo com o desastre que teve na baía de Minamata, no Japão, onde foi derramado o mercúrio e todos os problemas neurológicos apareceram. E foi um médico que me chamou a atenção e disse: “Olha, o que a gente está vendo hoje lá no rio Tapajós são os mesmos sintomas que aconteceram no Japão 50 anos atrás”. Então, a gente pode ver o futuro se não fizer nada.
Sue: Como cineasta, e como alguém que está em contato com as pessoas da Amazônia, a gente percebe que elas estão se apropriando cada vez mais do audiovisual para falar sobre elas…
Bodanzky: É, hoje, se existe uma novidade no cinema brasileiro, é o cinema indígena, que está aparecendo com muita força. Eles produzem seus filmes, distribuem via as redes sociais, estão nos festivais, e não só brasileiros, mas mundiais. Então eles estão tendo voz e sabem usar essa voz.
Flávia: E como você avalia o contexto da inteligência artificial na produção do cinema?
Bodanzky: Essa é a grande questão do momento. A tecnologia vem, cria situações, e a sociedade tem que aprender a lidar com isso, se adaptar, porque vem com uma rapidez incrível. Como a gente está vivendo isso agora, é muito difícil ter uma visão futura. Ninguém tem um oráculo para dizer o que vai acontecer daqui a 50 anos. As coisas se atropelam com tanta rapidez, que no máximo o que a gente pode fazer é ficar atento e tentar se salvar ali dentro do que se pode fazer.
Flávia: Mas isso lhe preocupa?
Bodanzky: Não, porque não é a inteligência artificial que provoca as coisas, é o homem que a usa. Então, isso é uma questão social e política, não tecnológica.
Sue: E como que a gente pode levar essas exposições para além dos museus?
Bodanzky: O meu trabalho está muito focado nisso. Eu sempre imagino, sempre desejo que o resultado dos meus filmes e minhas fotos caiam na mão dos ativistas. Inclusive, o meu último filme está sendo utilizado nas comunidades indígenas. Eles estão fazendo uma narração em munduruku. E eu sempre tive esse foco de atuação política. Nos anos 70, grande parte desses filmes era inviável circular nos cinemas e na televisão, mas circularam em 16 milímetros em cineclubes no Brasil inteiro.
Flávia: E quando você se vê retratado em sua história, apresentado dessa forma, como se sente em uma missão que ainda está sendo cumprida?
Bodanzky: Quando inauguraram a exposição em São Paulo, eu olhei assim: “Não sou eu” [risos], é outra pessoa. Não tenho culpa nenhuma, não fiz nada aí. E pouco a pouco a gente vai aceitando e pensando: “Eu fiz isso mesmo”, “que bom que fiz” e “que gostei de ter feito”. E continuo fazendo.
“Um Olhar Inquieto” no Festival de Cinema da Amazônia
Sue Anne Cursino
É interessante marcar a coincidência de que nesse mesmo setembro de 2025, o Teatro Amazonas recebeu a exibição do documentário autobiográfico “Um Olhar Inquieto: O Cinema de Jorge Bodanzky”, dirigido por Bodanzky em parceria com a jornalista amazonense Liliane Maia, dentro da programação do 7º Festival de Cinema da Amazônia – Olhar do Norte, realizado em Manaus entre os dias 17 e 21 de setembro.
Um verdadeiro cinéfilo, o professor Tomzé Costa (FIC) esteve presente em diversas sessões do festival, entre elas na exibição filme de Bodanzky, sobre a qual tece um comentário: “Não há nada mais revelador que o título do documentário ‘Um Olhar Inquieto: o Cinema de Jorge Bodanzky’, dele e da Liliane Maia. Ele próprio (Bodanzky) se auto revela no filme ao se reconhecer como o cineasta que trouxe inovações tecnológicas e estéticas no fazer documentário, agora misturado com precisão à ficção, na mesma linha de Eduardo Coutinho.
Mas há outra homenagem que devemos prestar à Bodanzky: a de revelar os efeitos maléficos que os governos militares da ditadura impuseram à Amazônia – aos povos indígenas, à natureza e ao território. Foi um dos primeiros a denunciar, com imagens, a devastação organizada que o capitalismo estava reservando à região. Até hoje, Bodanzky continua a revelar esse interior da Amazônia, a partir de um olhar identificado com sua população - indígenas, ribeirinhos, quilombolas e os pobres urbanizados. É necessário rever (e conversar mais) sobre toda sua filmografia. Um ótimo ‘presente’ aqueles que participaram da 7ª edição do Festival Olhar do Norte”, disse o docente.
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